*aviso que essa postagem ficou muito grande para o e-mail, então para ver ela completa é só ir na página da newsletter no substack. boa leitura
Quase que não sai uma edição nova nesse mês, mas decidi que minha fadiga não poderia ficar na frente de postar o que aconteceu na última semana para vocês. Esse tipo de postagem é novo para mim e por aqui, porquê o decifrado tem um pouco mais de um ano de idade e porquê não acontecem festivais com frequência em Porto Velho para eu comentar. Teve um antes desse, o Povos da Floresta, que eu não fui porque estava doente (triste).
Nessa cidade tão abandonada por Deus e desprovida por natureza, um evento de três dias misturando a cena local com a nacional é um bálsamo para mim que anseio por ver mais shows com propostas diferentes. No entanto, como acabei de falar, a falta de apoio proporciona todas as barreiras possíveis para se fazer um evento desse tipo.
Custo amazônico, distância amazônica, alguma coisa mais de ruim amazônica. Facilitaria se o resto do Brasil visse o Norte como algo mais do que apenas um lugar para fazer hidrelétricas e furar poços de petróleo. Isso tudo somado a aventura de trazer esse festival simultâneamente para 5 capitais. Obviamente os problemas vão aparecendo.
Mas antes de falar sobre isso, como foram os shows?
Vou começar falando sobre os shows da Semana da Música, evento preparatório para o festival. A abertura aconteceu no Grego Original com a maioria de bandas locais, terminando com Plutão Já Foi Planeta. Eu me diverti com as mudanças bruscas de tom das atrações, uma hora temos algo meio punk com Bedtrip, depois os instrumentais polirrítmicos da Tuer Lapin, Monolito entregou sua versão de metal com vocais melódicos, Calibre Insano já trouxe um som mais sujo, K7 preparou o terreno com seu pop rock com sintetizador e saxofone, até chegar na proposta bem segura, mas efetiva da Plutão. Mesmo com pouco tempo, essa foi a parte mais consistente do Festival, no shade.
Na terça tivemos um problema enorme que foi relatado por um dos guitarristas da banda Vandrin & Rafini. Eles foram tocar no Mercado Cultural, mas chegaram lá e não encontraram a bateria que o Festival disse que ia disponibilizar. Rodolfo Bártolo, baterista que iria tocar depois com a Sexy Tape e Daniel Groove, teve que buscar a bateria montada no Grego Original, o que fez com que um show que deveria começar às 19h30, começasse mais ou menos às 21h30. Apesar disso, todos apresentaram com muita solidez, destaque para o Daniel com apoio da Sexy Tape, que quase não conseguiu sair do palco devido aos pedidos de bis do público.
Agora vamos para o que interessa, o evento principal.
DIA 1
Nesse dia, recebi a confirmação que havia sido credenciado como imprensa para acompanhar o evento, a primeira vez de muitas espero. O azar é que sou muito precavido e já tinha comprado ingresso para os três dias, mas acho que valeu a pena no final. O primeiro dia teve o line-up mais equilibrado eu diria. O público estava médio tendo como referência os dias seguintes, porquê a casa de shows O Monarka não chegou nem perto de ficar intransitável. Tinha dois palcos, um alto e outro baixo, o que teoricamente deveria ajudar na troca de bandas, mas aparentemente não. Todos os dias houve um atraso de pelo menos uma hora e meia para começar e eu voltei para casa sempre perto das quatro da manhã (lá se foi meu sono regulado).
Fora isso, acho que o meu maior problema é que deixaram a Marcela Bonfim no começo, sendo que ninguém chega tão cedo, só quem tava cobrindo o evento (um beijo para o
, que conheci e dividi pista nessa cobertura). Marcela é muito boa, ponto. A gata tem força e malemolência, uma presença de palco que é rara por aqui. Já na passagem de som, com um copo de cerveja na mão, ela já estava arrasando, no pra valer foi um estouro. Ritmos brasileiros e regionais se misturam a um balanço de reggae, que recebe um adorno final com a voz cheia da cantora, com uma mensagem forte sem soar “performativo”.Depois tivemos Ecdise, projeto de Giovanni Marini que também comanda a Coveiros, que foi uma das primeiras matérias daqui do decifrado. Ele já foi meu professor de geografia, então fiquei feliz em ver que o bom humor dele na sala de aula foi trazido para o palco. Carisma não se compra. Com seu som trash e gritado, as vezes você só entende quando eles explicam. Não é exatamente um problema, porque permite esses momentos de interação com o público. Ele parou para ensinar o refrão de Desafeto, “Nem vem, que o papo é reto, tu és meu desafeto!”. Óbvio que aprendi e cantei junto.
Esses dois são daqui e já tenho familiaridade, já O Tronxo lá da terra distante-mas-não-tão-distante de Manaus, me surpreendeu com seu som instrumental de guitarra reverberada ao infinito e de bateria volumosa. Minha filosofia era de ir sem conhecer a maioria das bandas para levar susto mesmo e essa foi uma bela surpresa.
O mesmo não posso dizer do que veio depois, pois o tocantinense Kanichi não entregou algo muito polido. Acredito que o vocalista devia estar cansado da viagem até aqui, porque as notas erradas se acumulavam aos montes e o carimbó sintetizado fez pouco para o pequeno público esboçar reação. Espero ter outra chance com eles em uma situação mais favorável.
Agora, um dos melhores shows da noite, se não O melhor show da noite, foi da Camarones Orquestra Guitarrística. É sempre bom quando atos instrumentais engajam o pessoal. Bem veteranos nesta estrada que é tocar música, eles estavam confortáveis, brincavam e dançavam para o rock praiano, mas ainda assim experimental que fazem. Destaque para Ana Morena, a baixista mais diva pop que já existiu e o guitarrista Anderson Foca que animou bastante o show.
Depois disso, a local Da Ordem Ao Caos apresentou seu som rápido e marcado do thrash metal, mas que por algum problema no som, pareceu um pouco baixo demais para mim, pelo menos a bateria estava faltando “punch” no dia. Não incomodou tanto, porque tinha energia para dar e vender nos guturais do vocalista Mário Vicente.
As coisas deram errado mesmo foi no som das meninas The Mönic, que passaram quase o show inteiro com os microfones com volume aquém. Para completar, uma corda do baixo da Joan Bedin arrebentou no meio da performance. Ainda assim, se você tiver jogo de cintura e uma presença no palco, as coisas podem sair menos feias. Elas conseguiram tirar o pessoal do chão, principalmente com o domínio que Dani Buarque tem no palco.
Já na reta final, tivemos a presença da banda que vem de Ariquemes, Os Últimos, que também mostraram um som bastante consistente e maturado de 15 anos na estrada, com uma veia pop muito gostosa de escutar.
Para fechar, tive uma boa primeira impressão da banda soteropolitana Maglore, com seu som aveludado e cheio de esmero. Acabei comentando com uma amiga que entendi a Beatlemania com eles, deveria ser crime um homem cantar músicas românticas olhando no seu olho, é muito perigoso.
DIA 2
Esse dia eu cansei, o que não ajudou a acompanhar o terceiro dia também. O bom é que começou devagar, com o Klazanorth, daqui da cidade, tocando seu reggae com toques de RnB. O vocalista tem uma voz de anjo, a melhor performance vocal no Festival inteiro provavelmente, que foi acompanhado por um saxofone reverberado, dando aquele ar chique.
Depois disso, Negra Mari fez um pocket show, trazendo até dançarinos, mas a falta de público naquele horário deixou as coisas sem impacto. Depois de tocar seu rap autoral, ainda deu uma palinha de “Eu só quero é ser feliz”, mas não surtiu efeito.
Numa mudança completa de tom, a mineira Projeto Clandestino pegou uma pequena aglomeração que se formava e tocou um blues rock muito estrangeiro, mas bem divertido. Foi legal ver em ação uma gaita solada pelo vocalista André Gouveia.
Logo depois, a banda amazonense Doral apresentou um pop seguro com a participação de Duda Raposo, que tomou protagonismo com boa desenvoltura.
Um dos destaques da noite foi uma dupla que veio de muito longe, lá de Paranavaí (PR), numa longa turnê para tocar seu novo disco, o Sã Verdade. Estou falando de 43duo, que trouxe um som lisérgico e super cativante, com os vocais embebidos em chorus de Hugo Ubaldo na guitarra, embalados pelo baixo sintetizado e a bateria de Luana Santana, que dividem a atenção dela, mas nunca ficam fora do ritmo.
Depois disso, meu corpo já pedia socorro e qualquer coisa que não me chamasse a atenção me faria ficar sentado. Nitro é um clássico rock de tio, uma das bandas mais antigas da cidade que, como um legado duradouro é admirável, mas como show não é do meu gosto.
Depois veio Vision Apache, que trouxe mais rap para a mesa e com certeza agitou bastante o público, mas nessa hora eu fui sentar pois não aguentava mais ficar em pé.
O que me fez aguentar um pouco mais foi o incrível, maravilhoso, sensacional, show do grupo recifense Mombojó. Sem saber nenhuma música, as letras grudavam e logo fui me familiarizando com o som ainda muito diferente deles. De tanta guitarra distorcida que eu escutei nesses dias, Chiquinho botou uma seringa de adrenalina em mim com seu sintetizador e sampler. Para quem ainda não estava convencido, eles engataram músicas do álbum de versões do Alceu Valença, o “Carne de Caju”, e fizeram o público cantar o “o-io-io-io” de “Morena Tropicana” em plenos pulmões.
Já com o calor no corpo, virei para o lado e estavam tocando uma junção de artistas com uma química incrível, que é a Quilomboclada, mais Bado e Sandra Braids. Foi muito divertido ver Bado, que associo com uma figura mais introvertida sentado com seu violão, tocar músicas mais expansivas, capitaneadas pelo flow de Sandra, Samuel Pessoa e Béra Ákilas. Além disso, me deparei com minha professora que está acompanhando o projeto, contemplado pelo Sonora Brasil do Sesc, fazendo vídeos deles para o REC (Rádio, Educação, Cidadania). Vale a pena dar uma conferida.
Agora, mesmo com boa vontade, eu não entendi a pira de Jovem Dionísio. Atrasaram bastante e não ajudou que eu estava exausto e tive a ideia inteligente de ficar no meio da muvuca que ficou na pista para ver eles. Depois de duas ou três músicas eu saí e acompanhei no camarote, mas sem energias para prestar tanta atenção. No geral, é bem apresentado e consistente, mas nada me fisgou.
DIA 3
Podia dizer que estava no meu limite, mas acho que só fui encontrar ele no final da noite, onde fiquei sentado num show inteiro. Mas eu comecei bastante confiante, até porque quem abriu foi a banda Wari, que com seu rock sensível com camadas de sintetizador se destaca em meio a coisas muito sisudas daqui da cidade.
Eu ainda estava cansado do dia interior, então o Expresso Marciano não foi tão marcante para me deixar impressão, espero ouvir em condições de corpo e espírito melhores para julgar de maneira mais fiel. Agora, em mais um erro de organização, a banda Chevy e Os Galácticos trocaram de lugar e palco com Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo devido ao voo da banda paulistana. Poderia reclamar, mas isso acabou dando muito certo porque talvez eu não teria a mesma energia em 40 minutos.
Sou completamente suspeito para falar, porque estava esperando esse show e fiquei a um palmo de distância da Sophia, mas foi um espetáculo. Com um público pequeno, mas completamente amontoado e engajado em torno da caixinha que era o palco 2, o espetáculo funcionou como aquela experiência de estar num show de uns colegas no quintal de alguém.
Desde as músicas lentas do primeiro disco, até as mais frenéticas do Música do Esquecimento, a banda mostra maturidade ao tocar sem perder o ar de descontração. Me comentaram que as gracinhas deles eram muito maiores no início, mas aqui o papo e piadas ficou entre-músicas, com anedotas sobre o viagem para Porto Velho no mesmo avião em que o governador de Rondônia, o mais burro do Brasil, retornava depois de ficar preso em Israel devido a escalada da guerra com o Irã. Também participei de uma roda punk quando Sophia deixou o palco e se jogou para cima do público. Enfim, queridos, espero ver mais vezes.
Foi uma atitude insensata ter gastado minhas últimas forças para pular nesse show, porque depois foi completamente insuportável continuar assistindo. A banda Chevy e os Galácticos, de Vilhena (RO), veio depois e não se beneficiou com a troca de palco e a pista ficou meio vazia depois que os fãs de Sophia foram embora do Festival. Zoohumanos, do Acre, trouxe um pouco mais de balanço, que eu precisava naquele momento.
No palco principal, Gabriê cativou bastante o público, junto da participação de Bonfantti. Uma dupla que tem muita sinergia entre si. Ainda espero que algo da cantora funcione para mim, até o momento ela ainda exala a aura de música de “The Voice”, sem muita identidade. Depois, Mateus Fazeno Rock deu um showzaço, com letras potentes e a mistura de guitarra e beats. Os poucos que estavam na pista dançaram e não se decepcionaram.
Benvindo ao Pacífico me deixaria mais feliz se eu não tivesse ouvido tanta distorção de forma consecutiva, mas a proficiência do baixista Anderson Benvindo e a desenvoltura do vocalista Rômulo Pacífico ajudaram a não ser uma experiência tão cansativa. Já o Beradelia sofreu com o público que se esvaziava mais ainda e que já não estava lá para ver o show deles. Apresentaram bem no entanto, sem deixar a peteca cair.
Já esgotado com os três dias, mas curioso para ver qual era o som do Rancore, me sentei perto do palco numa cadeirinha de madeira e fui recebido com um som super animado e menos carrancudo do que eu esperava. Queria parabenizar Teco Martins por ser um vocalista de uma banda de rock que não tem medo de dançar, meu maior problema com o regime hétero-masculinista do rock. No final do show, com pelo menos umas 20 pessoas apenas presentes, ele desceu do palco e veio balançar um chocalho no ouvido de todo mundo, até em mim que estava sentado. Me senti abençoado e recompensado por ter chegado até o final.
Considerações finais
Acho que o Festival Casarão ser esse bastião para a música da cidade é um posto muito pesado para carregar. Admiro a coragem de todo mundo envolvido, mas talvez esse monopólio devesse se desmembrar em mais iniciativas. Nas mesas de debates que antecederam os shows em si, ficou muito evidente que a coletividade é a força desses movimentos fora do mainstream. Como explicou Ana Morena, baixista da Camarones Orquestra Guitarrística na discussão de Redes e Festivais, sobre todo ecossistema em torno da gravadora DOSOL e o Festival que recebe esse nome também, lá no Rio Grande do Norte. Eles sempre incentivaram outras pessoas além deles a fazerem eventos, estúdios, shows etc.
Porém, eles têm uma realidade em que festivais grandes dividem espaço com os pequenos, o que para nós é um conceito alienígena. Pera aí, vocês têm mais de um festival? Essa foi minha impressão, pelo menos. Eles tem problemas com as leis municipais e estaduais de incentivo a cultura, aqui não tem lei nenhuma e os recursos federais (Aldir Blanc e Paulo Gustavo) são geridos com má vontade pelo desgoverno de Rondônia, prejudicando os artistas no processo.
Pode parecer um monte de devaneios, mas o ponto é que duas coisas podem ser verdade ao mesmo tempo. É importante ter um festival aqui puxando os artistas e trazendo cultura, mas fazer isso sozinho é insano e um desafio hercúleo.
O que ficou evidente também é a equipe completamente reduzida do evento, que ainda precisava dar conta dos outros shows que aconteciam nas cidades do circuito. Como Vinicius Lemos falou na entrevista que me deu no início do ano, os editais dão preferência a iniciativas de circulação, mas escolher usar o recurso no ano seguinte ao invés de usar no primeiro ano que se tenta isso foi bastante arriscado.
Nesse ponto, também tem que haver uma melhoria na logística. Obviamente os voos daqui são horrorosos, mas muitos artistas tocaram em dias que o público não deu liga devido a essa circulação. Mateus Fazeno Rock deveria estar no segundo dia, Rancore no primeiro. Outra coisa que aconteceu foi muitos erros de som, que para mim que não fui em tantos shows, passa despercebido, mas quem é mais vivido pega rapidamente e fica feio para o evento.
Ainda tem uma situação envolvendo um artista de fora que deveria fazer um after show e, como foi relatado para mim, o festival deu para trás por motivo não especificado. (Errata: numa versão anterior desse texto, coloquei que seria na Semana da Música, mas a produção me informou que seria algo depois do evento principal. Não foi realizado devido a uma “questão de cronograma de datas da burocracia”, com um recurso do edital da Petrobrás).
Não acho que vá acontecer isso, mas caso alguém acuse que estou falando mal de graça, tenho que fazer esses apontamentos porque precisamos de eventos como esse. Só porque temos poucas oportunidades, não significa que podemos aceitar qualquer coisa.
Com tudo isso dito, para mim foi uma experiência bastante proveitosa. Fiz amizades, conheci muita gente legal e ouvi muita coisa boa. Faria tudo de novo aliás, fiquei exausto, mas satisfeito. Deu tudo certo se você olhar o resultado final, considerando que até mesmo festivais grandes com um monte de dinheiro passam por problemas. As coisas que deviam mudar realmente são passíveis de melhoramento. Outras coisas, como falta de recursos para cultura, dificuldade de deslocamento até o Norte, são problemas que vão perdurar por bastante tempo.
Para concluir, eu espero que a organização do festival esteja aberta a críticas construtivas, que ouçam mais os seus artistas, alguns que tocaram de graça na Semana da Música, e ouça seu público, para trazer edições cada vez melhores, fazendo jus a uma história que dura 25 anos. Ano que vem estarei fazendo a mesma coisa, credenciado ou não. Teremos mais decifrado nas próximas semanas, com uma entrevista super legal que fiz com dois dos integrantes da banda Monolito lá de Ariquemes (RO). Enquanto isso, se cuidem e apoiem a sua cena local (mas também deem feedbacks sinceros). Até mais!