Recentemente redescobriram a dona da voz mais única do Brasil por causa do pop oitentista de Escrito Nas Estrelas, mas os trabalhos mais interessantes de Espíndola às vezes contém um único instrumento a acompanhando: a craviola. Por isso vamos falar dele, o disco Pássaros na Garganta de 1982. Na internet, sempre comparam Tetê Espíndola com Kate Bush ou Björk. Invés de encontrar similaridades, acredito que Tetê tem a grandeza de estar de igual para igual no cânone das gigantes cantoras do Art Pop. Motivos não faltam e esse projeto é um deles.
Ao mesmo tempo que há melodias reconhecíveis e acessíveis, há uma quantidade considerável de experimentações em torno desse instrumento de 12 cordas que tece quase todas as 13 faixas do trabalho. A ressonância, as dinâmicas, a acústica, tudo é aproveitado ao máximo e é o par perfeito para o timbre prateado da intérprete sul mato grossense.
Confesso que talvez a minha primeira memória consciente de ter escutado Tetê foi quando alguém compartilhou a sua participação em Mônica e a Sereia do Rio no finado Twitter (ou X), mas posso muito bem ter ouvido antes, ela não é nenhuma desconhecida. No entanto, o meu momento de pensar de fato “meu deus” foi quando ouvi a segunda faixa do álbum, Cunhataiporã, lá em meados de 2019. É uma daquelas canções que enchem seu coração de saudade ou nostalgia, mesmo se você nunca tenha descido o Rio Paraguai.
Sobre a história do álbum em si, esse é o segundo álbum solo da carreira, seguindo o sucesso de Piraretã (1980) e o álbum em conjunto com seus irmãos, Tetê e o Lírio Selvagem (1978). Foi importante também por sedimentar a artista no hall dos talentos da Vanguarda Paulista, que contribuíram imensamente com o Pássaros na Garganta, algo que falarei quando chegarmos no faixa a faixa.
Quando eu escuto esse disco, me sinto criança novamente, com essas cantigas em que Tetê brinca com a garganta, tenho lembranças das minhas férias de infância na casa das minhas tias, onde tem uma vista do Rio Madeira e da Estrada de Ferro Madeira Mamoré. Não é difícil se sentir desse jeito, pois o álbum é uma carta de amor às pessoas, às cenas da vida cotidiana e da natureza.
Tetê expressa tudo isso com uma paixão inigualável e contagiante. Esse relacionamento íntimo com o natural perpassa até como o projeto é organizado, sendo dividido em um lado “verde” e um lado “maduro”, substituindo os convencionais lado A e B de um vinil. De certa forma, essa configuração se expressa na trajetória que essas músicas nos levam.
LADO VERDE
O disco se inicia com Amor e Guavira, onde um lado lúdico da cantora nos recebe com seus conhecidos agudos. A canção, uma das várias colaborações com o letrista e compositor paulista Carlos Rennó, é quase um registro fotográfico, que não apenas incita imagens, como também aguça a imaginação e outros sentidos, algo que ela explicou em uma entrevista dada ao jornalista e crítico musical Pedro Alexandre Sanches:
“E a gente brincava muito disso na adolescência, “vamos catar guavira”. Papai falava: “Ah, foi no guaviral que aconteceu isso e aquilo”. Criou um lance sensual pra isso, os namorados iam catar guavira. E o pé de guavira é bem baixinho, uma arvorezinha muito baixinha. Então você tem que agachar, deitar, pra colher a guavira, então os namoros rolavam aí, no guaviral. Tem essa relação gostosa também, com namoro, com amor.”
Descrevendo o namoro de um moço e uma menina “debaixo de uma árvore da flora”, a letra brinca com as palavras homófonas para descrever aquele outro tipo de brincadeira com a língua que a canção conta: “Flor da pele que me impele assim / Ao mais louco amor / Que se faz naturalmente enfim /Seja onde for”.
A canção seguinte é Cunhataiporã, aquela que citei no início e que já foi gravada por Tetê em seu disco anterior, Piraretã. De autoria de um dos irmãos de Tetê, Geraldo Espíndola, a faixa é minimalista, contendo a presença vocal da cantora e sua craviola. Numa escala menor melancólica, ela começa com uma pergunta: “Onde você quer ir meu bem? Diga logo para eu ir também” e nos leva a um passeio por topônimos do Mato Grosso do Sul, mesclando idiomas indígenas (cunhataí porã sendo moça bonita em tupi guarani e que se transforma num nome próprio aqui, seguido de che rohayhu, um eu te amo em tupinambá). Uma canção relativamente simples que é entremeada por melismas sopranescos e dificílimos após os refrões.
Essa faixa também tem uma história, como conta Geraldo Espíndola em uma entrevista: “Cunhataiporã é uma canção composta em 1976. Fiz para minha esposa viajando de trem de Corumbá para Ponta Porã, uma viagem que sempre fazíamos. Essa música é um relicário que a gente ama e preserva e além de tudo fala da terra a que pertenço. Eu amo a minha terra, por isso faço este tipo de canção”,
Quando o disco não segue num sertanejo raiz da sua terra, ele vai para lados incomuns, como a próxima faixa, Canção dos Vagalumes, colaboração com um dos ícones da Vanguarda Paulista, Arrigo Barnabé, e com o multi instrumentalista Félix Wagner no piano. Essa faixa apareceu pela primeira vez no compacto Londrina MPB81, de autoria do Arrigo com participação de Tetê no vocal, gravadas para o festival MPB Shell de 1981. Não tentarei explicar o que é dodecafonismo, porque não sou o maior expert em teoria musical, mas é uma faixa experimental e erudita, em que as notas parecem nunca se repetir e onde é apresentado pela primeira vez um elemento recorrente no álbum: gravações de sons da natureza captados no Mato Grosso do Sul.
Numa entrevista para a jornalista Cristina Fonseca, Arrigo explicou como utiliza esse estilo de composição que, na primeira ouvida, parece quase livre, mas que há muita deliberação:
“Eu me preocupo bastante em fazer com que a palavra saia fluente dentro da frase musical. Fluente e natural. Tenho um cuidado grande em não criar um negócio que fique parecendo "modernoso", "bizarro". Quero fazer sempre uma coisa que tenha sentido exato, que o canto tenha nexo, que seja adequado à melodia atonal que estou usando. Este tipo de composição, com as palavras, está bem nítido na Canção dos Vagalumes.
Procurei no dicionário todas as palavras que começassem com duas consoantes, como BR, de brejo, brinco, brilho, porque eu queria que, quando uma pessoa ouvisse a música, ao mesmo tempo sentisse o som BRI / BRI das palavras, como o sinal luminoso ou o ruído dos vagalumes mesmo. Essa sonoridade, óbvio, levaria a pessoa a ver imagens. Esse método de composição é muito complexo, difícil, mas gostaria de trabalhar todas as minhas peças desse jeito.”
Depois disso, pulamos para o divertimento de vibrafones em Olhos de Jacaré, composição de Geraldo Espíndola e Carlos Rennó, com Félix Wagner tocando esse instrumento idiofônico. A canção salta um pouco entre versos puxados pelo eruditismo e um refrão sertanejo muito gostoso de escutar, com uma melodia sincopada na craviola, enquanto Tetê vai mudando de oitavas ao cantar “jacaré”. É uma faixa bem curtinha e me pego sempre colocando pra tocar novamente quando acaba.
Muita coisa acontece nessas primeiras faixas, então para compensar, vamos para a lindíssima e calma Fio de Cabelo. Essa canção escrita pela própria Tetê é embalada pelo dedilhar da craviola que parece imitar o movimento de acariciar as madeixas de alguém. Nisso, as capacidades multifônicas do instrumento são exploradas para criar essa sensação de flutuar. Gravada na Gruta da Lago Azul no Mato Grosso do Sul, o áudio nos transporta para esse cenário e de repente estamos no pé de uma corrente de água enquanto Tetê nos nina. Nesse disco cheio de músicas incríveis, essa é a que me chama mais atenção e talvez seja a minha preferida.
Essa música em específico tem uma história curiosa atrelada a ela, que Tetê conta nesse vídeo maravilhoso (do minuto 15:05 até minuto 17:04)
Ainda não parei para elogiar o trabalho do letrista Carlos Rennó, que em Cuiabá, a próxima faixa, consegue escolher sempre as melhores palavras, tanto em som como em sentido para contar a terra. Com uma melodia descendente e sombria, a faixa ainda tem uma qualidade reluzente e vemos Tetê brincar mais ainda com a voz ao cantar “cuia” em seu registro altíssimo, onde um delay empregado faz as sílabas virarem cantos de pássaros e, logo depois, ela repete o nome da cidade em um gutural. A craviola de Tetê e o piano de Félix Wagner dançam em torno um do outro, elevando as particularidades desses instrumentos.
Se na última elogiei da poesia de Rennó, na faixa título é onde sua inspiração transborda para dar tom à tese principal do disco. Mas obviamente, os versos “Ânsia de que a vida seja mais cheia de vida /Pelas alamedas, pelas avenidas/Em aroma cor e som”, tem um peso diferente na voz de Tetê, que se entrega à mensagem quase que num fôlego só. O título icônico dessa faixa é uma alcunha criada pelo poeta Augusto de Campos, que já já vai aparecer nessa tracklist.
LADO MADURO
A fruta começa a trocar de cor, então somos apresentados à Sertaneja, uma versão em guarânia da original de René Bittencourt. Tetê dá outra vida para essa canção, que já era bonita na voz de Orlando Silva, colocando-a em alguns tom acima para abarcar seu agudo e dando um pouco de velocidade. A escolha de colocar ela no álbum é muito certeira, se mesclando completamente ao repertório original. Coincidentemente, tanto o lado verde e o maduro começam com faixas onde tem Almir Sater na viola.
Outra grande música é a próxima, Longos Prazeres de Amor, escrita por outro irmão talentoso da cantora, Celito Espíndola. Fica até difícil chamar essa música como um dos pontos altos desse projeto porque realmente tudo aqui é muito bom, mas quando o canto de Tetê rodopia à estratosfera com o embalo da craviola é enlouquecedor de tão bom. Um toque especial foi terem deixado na gravação, acidentalmente ou não, o suspiro de Tetê após cantar o último “amor” da música.
Em Paisagem Fluvial, chuva e trovões se tornam instrumentos por um momento ao lado dos vibrafones e das 12 cordas. Escrita por Tetê e Arrigo Barnabé, é uma síntese do erudito e do sertanejo que os dois personificam. A partir daqui, o álbum conta só com composições feitas por Arrigo ou com sua parceria, então esperem coisas muito malucas acontecendo.
Na pequena Ibiporã, Tetê faz até mais que cantar, ela imita “a rã que ri”, dá risadas, faz percussão com a boca, tudo em volta de uma única frase musical na craviola. O clima de brincadeira é acentuado pelo piano ansioso de Wagner e pela inserção de gargalhadas de crianças ao fundo (que estão creditadas no encarte como músicos e tudo). É uma música “infantil” extremamente experimental, algo nada contraditório se parar para pensar.
Agora, no LP, Jaguadarte/Galadriel constam como uma música só, mas nas plataformas digitais elas estão separadas. De qualquer forma, elas têm em comum o canto de pássaros ao fundo e as inspirações literárias. São bem curtinhas, mas bem diferentes. Jaguadarte, por exemplo, é outra música atonal em piano de Arrigo, que nasce em torno da tradução de Augusto de Campos de um poema (Jabberwocky) de Lewis Carroll, autor de Alice no País das Maravilhas. Em Galadriel (personagem de J.R.R Tolkien), recebemos vocalises e nenhuma palavra. Na verdade, no encarte a música consta com o subtítulo Rainha dos Delfos e no lugar da letra está escrito “sugere o papo entre uma bruxa, uma fada e uma coruja”.
Para encerrar a obra, Tetê e Arrigo compõe a música mais linda do mundo: Sertão. Tem notas altas, mas também tem outro lado da extensão da cantora que vai para um belo grave suave. Percebo que toda música que eu chego, tenho a pulsão de dizer “essa é a minha favorita”, mas não tem o que fazer, é uma música que te transporta para outro lugar e é de uma doçura singela. Os sons dos pássaros no amanhecer e de grilos na noite aparecem aqui em momentos, sendo as únicas companhias para o canto dessa sereia moderna e sua craviola.
Não sei realmente o que dizer no fim dessa resenha, apenas que se você não ouviu, corra logo para ouvir. Um adendo é que o disco foi relançado numa compilação junto ao álbum Asas do Etéreo. Infelizmente há uma queda de qualidade de algumas faixas nos streamings de áudio, mas há reproduções mais fieis na internet também.
É interessante notar que esse projeto tão inovador aconteceu fora do grande mercado fonográfico da época, tendo saído no selo instrumental Som da Gente, criado pelos compositores Walter Santos e Teresa Souza. Numa entrevista bem conhecida, Elis Regina parabenizava a Vanguarda Paulista por fazer acontecer fora das amarras dos produtores. Faço as palavras dela as minhas, pois, por causa disso, temos essa obra prima para escutar hoje.
NOTA DO AUTOR: já tinha programado para escrever esse texto há algum tempo, mas foi uma coincidência muito triste escrever sobre um álbum que gira em torno de paisagens que hoje estão em chamas. Eu moro numa das regiões que recentemente ganhou o título de pior qualidade do ar no Brasil, então acho urgente ter essa discussão através desse disco, que se tornou mais atual do que nunca.
Antes de dizer tchau, vou colocar na íntegra o texto de introdução do disco que Augusto de Campos escreveu, para quem ainda não se convenceu ainda (eu duvido):
Voz de pássaros e de rio, a cidade de aço e de concreto que a recolheu, exilada de asas e de águas a devolve, agora inteira, uma grande cantora. Tetê. De Campo Grande para São Paulo e de São Paulo para o Brasil. Tendo ouvido Piraretã, seu primeiro LP solo, tendo-a visto e ouvido nas apresentações revolucionárias do show Clara Crocodilo com Arrigo Barnabé e a Banda Sabor de Veneno, eu a vejo como uma expressão totalmente nova em nosso cenário musical. Tetê - eu já disse - não se parece com ninguém a não ser com ela mesma. Única.
O timbre agudo, de registro incomum, a afinação perfeita e a própria estranheza de suas canções, infiltradas de ruídos tropicais e de vozes tupis, dão a experiência de ouví-la um sabor agridoce, esquisito, antigo e novo.
Ela domina a articulação. Suas inflexões estão cheias de toques sutis e achados imprevistos. Vejam como ela faz fluir sinuoso o rio Cuiabá na canção Piraretã e faz nascer matas mágicas do seu canto, entre jaguatiricas e boitatás, brilhos e barulhos da noite.
O encontro com Arrigo foi fundamental, na medida em que este proporcionou a Tetê um amplo espectro de experimentos sonoros levando-a tecer sua voz, em acrobacias cromáticas na tessitura dos mais raros intervalos musicais.
Da Sertaneja, recuperada do repertório de Orlando Silva, aos fugidios acordes e desenhos melódicos de Londrina, valsa sobre valsas. Todos os sons. Da rã que ri em Ibiporã ao cri cri de grilos de Canção dos Vagalumes e aos jogos malabares da briluz (brilho + luz) e dos grilvos (gritos + silvos) cambiantes do Jaguadarte.
A fascinante aventura de Clara Crocodilo, unindo o canto à dança e à fala ao gesto e ao gemido, num completo quebra-quebra, anárquico e polifônico, trouxe para Tetê o choque cultural da paisagem e informação urbanas. Do guarani ao guaraná. Da guarânia à música contemporânea. Do bom tom ao atonal. Grilos e zippers, corichos e chacretes, cunhãs e office-boys, sucuris e TVs.
Sem perder a substância do Campo Grande, que traz no sangue, Tetê se abre, cantora do seu tempo, a inauditos espaços sonoros. “O inesperado faz os corações dançarem mais” disse um poeta grego a mais de 2.500 anos.
Ela podia ser grega e teria uma lyra, poderia ser um trombairitz (trovadora) medieval e levaria um saltério. Os deuses a quiseram aqui, meia índia meia hippie. Cunhataiporã contemporânea do fim do século XX, voz e craviola. Tetê colibrisa. O Brasil vai ouví-la.